Novos ventos para trabalhadores da gig economy: caso Uber e suas repercussões

No Reino Unido, após sofrer derrota na Suprema Corte, a Uber anunciou que vai reconhecer direitos trabalhistas

Por Luisa Brasil Magnani para o JOTA

O tema do tratamento legal dado aos trabalhadores que atuam na gig economy ganhou um novo capítulo recentemente. No Reino Unido, após sofrer derrota na Suprema Corte Britânica¹, a Uber anunciou que vai reconhecer os motoristas do aplicativo como trabalhadores sujeitos a direitos trabalhistas no país.
A decisão da Uber, embora localizada, já suscita debates sobre suas repercussões globais², uma vez que a discussão sobre a regulação e normatização das relações de trabalho é tema candente em praticamente todos os países em que as plataformas atuam, como é o caso do Brasil.
Para se avançar no debate colocado, é necessário compreender as particularidades da decisão da empresa no Reino Unido, bem como suas divergências em relação à legislação brasileira. O Reino Unido possui, em seu ordenamento, uma categoria intermediária de vínculo de trabalho situada entre o profissional autônomo e o
empregado.
Naquele país, “workers” (trabalhadores, em tradução literal) são trabalhadores que atuam para empresas e possuem direitos trabalhistas básicos, como salário mínimo, trabalho remunerado em feriados, período mínimo de descanso semanal e proteção contra discriminação, além de outros direitos concedidos pela lei britânica³.
Esta categoria não se equipara ao “employee” (empregado), funcionário formalmente contratado pelas empresas, sujeito a todos os direitos trabalhistas previstos em lei, como os benefícios descritos acima, além das licenças maternidade, paternidade e por acidente de trabalho, direito a aviso prévio, entre outros.
No Brasil, a categoria de “worker” não existe, havendo apenas o empregado e outros institutos pontuais, como o trabalhador intermitente4 e a categoria dos empregados domésticos, sujeitos a regras específicas. A lógica que prevalece para os trabalhadores que atuam junto às plataformas, portanto, é tudo ou nada. Ou o trabalhador é
classificado como empregado e possui todos os direitos e benefícios regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ou é considerado um profissional autônomo, não estando sujeito a qualquer benefício.
Por aqui, trabalhadores que atuam na gig economy são regidos por contratos de prestação de serviço, portanto, não estão sujeitos aos direitos garantidos pela CLT, como férias, décimo terceiro salário, FGTS e seguro-desemprego. Há um embate vigente nas Varas e Tribunais da Justiça do Trabalho, com pedidos de reconhecimento de vínculo por parte dos trabalhadores, mas a posição atual do Tribunal Superior do Trabalho (TST) é pela inexistência de vínculo de trabalho entre as plataformas e seus prestadores de serviço5.
A ausência de formalização de uma relação de trabalho está na própria base da gig economy. A ideia é que trabalhadores possam atuar de maneira flexível, podendo prestar serviços a diversas empresas da forma que melhor atenda a seus interesses.
Esta premissa foi essencial para o sucesso do modelo de negócios e crescimento das plataformas nos últimos anos. Contudo, as pressões sobre a ausência de uma rede mínima de proteção vêm crescendo ao longo dos anos, tendo atingido seu pico durante a pandemia, em que os trabalhadores da gig economy se tornaram essenciais para a continuidade das atividades de segmentos como o varejo e o segmento de alimentação. Segundo dados do IBGE divulgados em dezembro de 2020, os contratos de trabalho intermitente respondem apenas por 1% do total de contratos de trabalho firmados no país, não sendo um formato totalmente assimilado no mercado de trabalho em geral e atualmente não aplicado nas relações entre as plataformas e seus inscritos.
Não se trata de fenômeno isolado, mas de um debate que vem se acelerando em diversos países e jurisdições. Não é, tampouco, uma discussão restrita a uma ou duas empresas, e sim a todas as plataformas e players que atuam na chamada gig economy.
O termo que designa o segmento da economia que se apoia nos serviços de prestadores de serviços freelancers, principalmente por meio da intermediação de plataformas digitais. Em fevereiro, a Comissão Europeia lançou a primeira fase de uma consulta pública sobre “a melhoria das condições de trabalho nas plataformas digitais”. Segundo a Comissão, cerca de 11% da força de trabalho europeia já prestou serviços por meio de uma
plataforma do gênero6.
A movimentação europeia no sentido de se criar um arcabouço normativo para essa nova força de trabalho se cruza com o panorama do Brasil. Ao enquadrar seus prestadores de serviço na categoria de “workers”, a empresa sinaliza a possibilidade de uma terceira via, que se revela em uma categoria intermediária à classificação de empregado tradicionalmente prevista em lei, que permita a sustentabilidade financeira das plataformas, de um lado, e a garantia de direitos, de outro.
Essa opção vai ao encontro de um cenário que se desenha no Legislativo Brasileiro. Pesquisa recente divulgada pela Fundação Getulio Vargas7 demonstra que, no último ano, houve um salto vertiginoso no número de projetos apresentados no Congresso que possuem alguma relação com a temática da regulação das relações de trabalho na
economia digital.
Em 2020, na esteira da pandemia da Covid-19, foram apresentados 71 Projetos de Lei na Câmara dos Deputados e no Senado que, em maior ou menor extensão, tangenciam o tema da normatização nas relações de trabalho envolvendo a gig economy. O levantamento apontou que a maior parte das propostas é restrita apenas à categoria dos motoristas e entregadores, enquanto uma minoria possui uma extensão maior, propondo a regulação de todo o segmento digital. É o caso do Projeto de Lei 3748/20, da Deputada Federal Tabata Amaral (PDT-SP), que cria condições específicas para
“trabalhadores em regime de trabalho sob demanda”.
Não é possível prever qual caminho o Brasil adotará, ou mesmo se um entre as dezenas de projetos irá avançar. Contudo, a depender dos ventos externos e internos que vêm soprando sobre a gig economy, podemos esperar mudanças no tratamento legal dado a essa força de trabalho, que se tornou indispensável na pandemia e que deverá
remanescer imprescindível quando ela passar.

* Luisa Brasil Magnani é advogada da nossa área de Consultiva Digital.

1 Íntegra do voto: https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/02/uksc-2019-0029-judgment.pdf?x44900

2 Referência: Financial Times: https://www.ft.com/content/68718de3-b25f-47d6-8f51-4df1f66d8b1e

3 Fonte: https://www.gov.uk/employment-status/employee

4 A categoria do trabalhador intermitente poderia ser considerada uma categoria intermediária. Contudo, esse instituto, disciplinado na reforma trabalhista de 2017, parece não ter engrenado no que diz respeito às plataformas digitais.

5 https://www.tst.jus.br/web/guest/-/afastado-v%C3%ADnculo-de-emprego-entre-motorista-e-plataforma-detransporte-por-aplicativo

6 Fonte: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/qanda_21_656

7 CENTRO DE ENSINO E PESQUISA EM INOVAÇÃO DA FGV DIREITO SP. Briefing temático #2: Trabalho
sob demanda no Congresso (2010-2020) – Um oceano de possibilidades – versão 1.0. São Paulo: FGV Direito
SP, 29 jan. 2021.

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