O direito de arrependimento em videogames

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POR Bernardo de Souza Dantas Fico e Bruno Blum Fonseca* (Artigo publicado originariamente na Revista Consultor Jurídico – Conjur)

O direito de arrependimento é garantido pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC – Lei nº 8.078/1990), tendo sido incluído no rol de direitos dos consumidores em 1990, antes da ascensão da internet. Hoje, vivemos em um mundo com uma virtualização intensificada, principalmente com a pandemia da Covid-19, sendo que a indústria do entretenimento, especialmente dos games, não ficou alheia a essa tendência e aproveitou a oportunidade para expandir. Nesse contexto, surgem dúvidas quanto à aplicação do já clássico direito de arrependimento em casos disruptivos envolvendo a compra de produtos digitais, imprevisíveis para os autores do CDC, entre eles a sua aplicação no mundo dos videogames.

O direito de arrependimento

Nos termos do artigo 49 do CDC, o direito de arrependimento confere ao consumidor a possibilidade de desistir de um produto ou serviço contratado fora do estabelecimento comercial, dentro de um prazo de 7 dias. O arrependimento é um direito potestativo, ou seja, basta ao consumidor indicar seu arrependimento para que ocorra a resilição do contrato e a devolução dos valores pagos com atualização monetária.

O “arrependimento” pode ser definido como o reconhecimento de que a manifestação da vontade não foi externada de maneira absolutamente consciente e induvidosa. Ao contrário, que o consumidor adquiriu o produto e tão somente na ocasião da entrega conseguiu perceber que a mercadoria não atenderia a suas expectativas legítimas. Nesse sentido, conforme a doutrina e a jurisprudência, o direito de arrependimento possui dois fundamentos independentes, ainda que inter-relacionados: déficit informacional e déficit de reflexão. Basta que um desses se verifique para que o direito de arrependimento seja aplicável.

O déficit informacional consiste na falta de acesso a informações que podem ser de interesse do consumidor (como tamanho, cor, modelo, durabilidade etc.) Contudo, a simples disponibilidade da informação não necessariamente o afasta. Para que o problema seja sanado, o consumidor deve, além de dispor das informações, conseguir compreender como elas se traduzem na realidade. Isso muitas vezes só é possível quando se tem contato direto com o produto ou serviço, tendo-o em mãos para analisá-lo. Disso decorre a possibilidade de arrependimento de compras realizadas fora do estabelecimento (telefone, internet, redes sociais etc.), já que a falta de acesso físico ao bem a ser adquirido limita a capacidade de coletar e assimilar adequadamente as informações.

O déficit de reflexão, por sua vez, equivale à dificuldade de processar subjetivamente a compra a ser realizada. Naturalmente, como uma reflexão adequada depende das informações recebidas, um déficit informacional logicamente implica o consumidor não ter acesso aos elementos mínimos para refletir. Apesar disso, a perfeita disponibilidade de informações não impede eventual carência na reflexão. Esse déficit pode ter diversas causas, incluindo: compras por impulso, pressão de vendedores, pressão de pares, emprego de publicidade abusiva, ou qualquer outra forma de importunação e/ou constrangimento.

Ao longo dos anos, a doutrina foi demarcando o significado desses dois critérios. Ainda assim, sua aplicação no mundo digital, inclusive nos videogames, pode ser complexa. Tomemos como o minimum viable product (MVP) do comércio em videogames um sistema no qual se adquire moedas virtuais (coins) por meio de dinheiro real e, uma vez obtidas, as coins são utilizadas para compras dentro do jogo (in game), a exemplo de itens consumíveis, itens persistentes, alterações estéticas, entre outros. O direito de arrependimento é aplicável a esse tipo de compra? Se sim, como aplicá-lo? Pode-se desistir da compra das coins, das compras in game, ou de ambas? Como avaliar os déficits de informação e reflexão? Há formas de mitigá-los?

O arrependimento aplicado aos videogames

Ao partir de uma leitura estritamente literal do artigo 49 do CDC, o simples fato de as compras dentro de jogos ocorrerem “fora do estabelecimento comercial” já ensejaria a aplicação do direito de arrependimento. Apesar da interpretação literal ser um dos métodos consagrados da hermenêutica jurídica, não se pode ignorar a teleologia e a história do instituto do arrependimento. Assim, deve-se considerar não apenas se o contrato se consumou fora do estabelecimento, mas a boa-fé do consumidor e se efetivamente esteve presente o déficit informacional ou de reflexão.

No tocante à boa-fé, é evidente que o consumidor não pode exercer o arrependimento com o objetivo de obter vantagem indevida, o que configura abuso de direito. Por exemplo, se o jogador adquire moedas virtuais e as usa para comprar itens dentro do jogo, a primeira compra, das moedas virtuais, aperfeiçoou-se. Ou seja, o jogador já demonstrou, por meio de sua conduta, que desejava adquiri-las, possibilitando ao game negar seu pedido de arrependimento da compra inicial. No entanto, ainda poderia discutir-se o arrependimento dos itens comprados in game e essa segunda compra poderia, em alguns casos, ser desfeita pelo arrependimento. Se, porém, o jogador usar um item comprado e tentar posteriormente exercer seu arrependimento, ainda que dentro do prazo, esse pedido poderia ser negado, também em virtude do aperfeiçoamento da compra. A extensão de uso que aperfeiçoa a compra dos itens in game dependerá do caso concreto.

Quanto aos déficits, dentro dos videogames, o déficit informacional ocorre com menor frequência, uma vez que muitos jogos permitem acessar uma prévia do item a ser adquirido. Por exemplo, há jogos que, já de início, disponibilizam uma quantia de sua moeda virtual. Nesse caso, desde o início, todos têm acesso à moeda virtual e seu funcionamento. Assim, mostra-se difícil reconhecer qualquer déficit informacional nas compras posteriores de moedas virtuais, pois o jogador já teve acesso ao bem, mesmo que em menores quantidades.

Por vezes, os itens in game podem ser testados previamente, usualmente em um ambiente controlado. Essa prática se assemelha no mundo físico aos provadores da loja de roupas. Em última análise, a possibilidade de “provar” um produto digital antes de adquiri-lo efetivamente pode implicar o afastamento dos déficits informacionais que justificariam eventual arrependimento. Os videogames têm a possibilidade de – mediante boa arquitetura de seu sistema de vendas – reduzir drasticamente seus riscos de exercício do direito de arrependimento, opção que, para compras on-line de produtos físicos, é de difícil resolução. Por isso, seguir estratégias que permitam ao jogador conhecer efetivamente os produtos digitais que pretende adquirir cria maior segurança jurídica nas transações em videogames, além de possibilitar maior satisfação dos jogadores com suas compras.

Contudo, ainda há de se enfrentar eventual déficit de reflexão nas compras envolvendo videogames. Por exemplo, particularmente no mundo dos games on-line, é recorrente que determinados itens sejam ofertados em tempo ou quantidade limitados, como itens promocionais ou temáticos. Assim, o jogador é instigado a adquirir esses bens rapidamente, sem maior reflexão, sob pena de não mais poder obtê-los. Não os adquirir rapidamente pode significar deixar de ter o item, enquanto os demais jogadores o ostentam. Nesses casos, é razoável afirmar que elementos externos prejudicam a reflexão do indivíduo? Se sim, tal pressão externa pode constituir um déficit capaz de justificar o direito de arrependimento?

Ainda, nas salas de jogos, misturam-se jogadores novatos com experientes. Assim, um elemento subjetivo a ser considerado é a pressão entre pares. De forma a evitar ficar para trás do restante do grupo, o novato pode sentir-se impelido a comprar produtos digitais para tentar alcançá-los mais rapidamente. Não são incomuns grupos/alianças entre jogadores, o que pode gerar a expectativa de que todos os membros do grupo adquiram certos itens. Essa dinâmica de pressão entre pares é agravada em face da já abordada limitação temporal ou quantitativa de itens digitais.

Outro agravante é o potencial viciante de alguns jogos, nos quais pode haver elementos análogos aos de jogos de azar. No caso das loot boxes (caixas de recompensa), por exemplo, o jogador é instigado a adquirir produtos digitais, de forma a tentar a sorte para ganhar melhores itens. Sem entrar no mérito da legalidade dessa prática, limitamo-nos a alertar para a possível constituição de um déficit de reflexão nos jogadores, ensejando que as empresas responsáveis disponibilizem ao consumidor o direito de se arrepender, dentro do prazo, de compras que podem ter sido feitas no impulso viciante desses jogos.

Além disso, às vezes, o próprio jogo/aplicativo pressiona o jogador. Não raro as empresas se valerem de pushes, landing pages, in-mail, pop-ups e outros recursos de notificação, para constantemente instigar usuários a comprar novos itens e aproveitar a mais recente promoção. O uso constante desse tipo de comunicação assemelha-se à figura do “vendedor insistente”, que perturba repetidamente o comprador até que o convença, por cansaço, a adquirir o produto. A inexistência de pessoa física realizando esse tipo de pressão não deve descaracterizar a prática abusiva.

Ademais, caso o videogame se utilize de propaganda que possa ser qualificada como abusiva nos termos do artigo 37, §2°, do CDC, e da regulamentação do CONAR (Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária), isso também seria causa para o reconhecimento do direito de arrependimento. Segundo a doutrina, a publicidade é considerada abusiva sempre que se aproveita da vulnerabilidade do consumidor para oferecer-lhe produtos.

Para os videogames com jogadores crianças e adolescentes há, adicionalmente, possibilidade de que a publicidade se aproveite do déficit de julgamento e experiência desses jovens. Nesses casos, deve-se valer também de uma análise à luz do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) na caracterização da abusividade da publicidade.

Conclusão

Há a possibilidade de se aplicar o direito de arrependimento nas compras ocorridas em videogames. Déficits de informação, ainda que possivelmente presentes, são de fácil mitigação, dependendo da boa arquitetura do sistema de vendas. Já no tocante ao déficit de reflexão, deve-se analisar in casu se há elementos que perturbam, ainda que involuntariamente, a pacífica ponderação do consumidor em seu processo de compra.

Aplicável o direito de arrependimento, cabe ao mercado de games buscar a implementação de medidas mitigadoras. Particularmente, sugere-se voltar esforços para sanar o déficit prevalente nesse mercado, o de reflexão, observando os fatores que influenciam na decisão dos jogadores, como existência de pressões indevidas.

Se isso aponta caminhos para avançar o debate dessa controvérsia em território nacional, há que se lembrar de que videogames são, não raras vezes, internacionais. Assim, aqueles que sejam operados por empresas sediadas no exterior poderiam, por exemplo, recusar-se a cumprir com o direito de arrependimento garantido pelo CDC. Essa perspectiva internacionalizada da questão faz jus a análise apartada, considerando as particularidades da interação transnacional entre agentes, bem como a interlocução entre leis aplicáveis ao caso concreto.


*Bernardo de Souza Dantas Fico é advogado de Contencioso Digital do Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados Associados.

*Bruno Blum Fonseca é advogado de Consultivo Digital do Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados Associados.

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